sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

Escrever inspira

A mão maliciosa segura o grafite. Como boa atriz que é, finge não ter nada a oferecer. Finge ser uma simples mão, cinco dedos, uma palma, unhas por fazer. A folha mais branca que a pipoca da esquina, tão branca que se confunde com uma mente que nada tem a oferecer, uma tábula rasa. A primeira palavra custa a ser desenhada. Como se ela fosse determinar como seriam todas as outras. Muita cautela. Finalmente ela é escrita, e como se tivesse tomado uma dose de energético, todas as outras começam a aparecer impulsivamente. A mão é maliciosa. Ela sabia que a cabeça não era uma tábula rasa, que tinha muita bagagem e não se lembrava. Aliás, a cabeça tem memória curta, mas a mão... E começam as pontuações remetendo os sentimentos mais íntimos da cabeça, sentimentos estes que nem mesmo ela sabia que tinha. Mas a mão sabia. A memória da mão é incomensuravelmente maior que a da cabeça. Afinal de contas, foi a mão que sentiu o calor de outra mão, que teve todo o seu corpo aquecido com aquele aperto, mais intenso do que a própria força física. Um aperto quase erótico. Que as palavras não conseguem se organizar para descrevê-lo. Ah, aquele aperto de mão... A mão nunca se esquecerá... Por mais que outros venham a apertá-la, abraça-la, envolvê-la, ela sempre carregará na memória aquele aperto de mão. A cabeça, com sua curta memória causada por um medo terrível de sofrer, irá esquecê-lo. Em suas recordações será como nunca tivesse acontecido. A cabeça prefere se lembrar dos momentos mais recentes, deixando os detalhes de lado. Mas a mão sabe disso. E é por isso que a cabeça tem medo da mão. Tem medo do estrago que o trio caneta, papel e mão podem fazer. Irá lhe submeter às experiências mais intensas e cuidadosamente guardadas. Essas memórias poderam fazer com que o corpo repense suas atitudes. Mude os hábitos. Faça coisas... Só para satisfazer a vontade da mão. Manipuladora mão. Que quer tudo para si, sem pensar nas conseqüências que isso pode acarretar para a cabeça. Depois de escrito, o caminho de volta é mais difícil. A cabeça toma uma dose de adrenalina tentando se acalmar, mas não tem mais jeito. Ela tem que tomar uma atitude. Manda a mão pegar o telefone. A mão, de malícia, começa a hesitar, só para deixar a cabeça mais anciosa. E ela toma mais uma dose de adrenalina, para lhe dar mais coragem. Pronto. Está feito. Agora a cabeça não sabe mais que ordens está dando. O corpo parece funcionar perfeitamente sem que ela precise fazer qualquer esforço. Mal sabe ela que a mão é quem está no comando, manipulando agora a voz, a entonação, a garganta. Tudo para ter de novo aquele aperto de mão. O mais erótico aperto de mão que podia sonhar em ter. Melhor do que qualquer coisa que já tenha tocado antes... Ela desliga o telefone. A cabeça já tomou tantas doses que não sabe mais onde está, que horas são, quem é. A mão mal pode esperar. Ele já está chegando. Com seu aperto de mão. E a mão toda molhada, entra em êxtase. Maliciosa mão...